Minha trajetória | Andressa Gomes
Meritocracia, se olharmos no dicionário o significado desse termo e termos isso como certo, cada indivíduo trabalha para seu próprio mérito, pessoas que se predominam pelos seus próprios méritos como se fosse uma seleção natural inserida em nossa sociedade. Acredito nesse conceito, e o acho muito interessante pois vem atrelado ao conceito de “work-hard” uma concepção americanizada que pressupões que indivíduos trabalhem duro para conseguir atingir seus objetivos ambiciosos.
Agora quero te perguntar, baseando-se nesses conceitos aqui apresentado, você acha que se trabalhar duro irá consequentemente viver uma vida melhor, isto é, ter um trabalho, uma família, alimento dentro de casa, acesso a saúde e lazer e principalmente educação de qualidade?
Acredito que muitos de vocês disseram sim, creio que se eu me esforçar, dar meu melhor irei receber como “recompensa” uma vida melhor. Ou seja, somente o seu mérito está em jogo.
E se eu te falar que essa concepção que temos pode ser implementada se somente se um indivíduo estiver inserido em uma sociedade utópica. Mas o que é utopia, deixo aqui um trabalho para você, caro leitor, de pesquisar esse conceito em fontes confiáveis.
Nascemos em uma democracia, e sou grata por isso, mas que está entre os dez países mais desiguais do mundo segundo o índice de Gini. Por que estou transmitindo essa informação? Pois é de sua importância termos essa informação como uma de nossas premissas, pois a conclusão disso tudo não será a mesma que a meritocracia prega, pois estamos inseridos em uma sociedade desigual. Nesse caso, pessoas como eu e como você precisam trabalhar duas vezes mais para nos equipararmos com uma pessoa privilegiada. Soa injusto, eu sei, mas temos que nos acostumar com isso e não nos lamentarmos.
Com isso, quero começar a relatar minha história, que vai estar inserido no conceito da meritocracia com contraponto a desigualdade que nossa sociedade é refém.
Sou filha do meio de uma família de três irmãos e meus pais. Meus pais sempre foram muito religiosos, crescemos inseridos em um contexto cristão religioso totalmente restritivo.
Sempre moramos em aluguel, meus pais nordestinos buscaram em São Paulo um refúgio, algo melhor. Sempre passaram dificuldades em relação ao aluguel aqui em São Paulo, pois além de ser a cidade do desenvolvimento, paga-se um dos altos impostos de moradia por metro quadrado perante o Brasil. Ou seja, traz a oportunidade, mas tira outras, como a de moradia.
Com isso, meus pais se viram sem saída, me recordo como se fosse hoje, meu pai reuniu a família toda e nos disse que iriamos para um local não muito agradável, porém iríamos ter algo próprio. Penso como foi difícil para o meu pai tomar aquela decisão, mas depois de nos ver sem energia elétrica em casa, sem água e sem telefone, pois não conseguia pagar as contas para pagar o aluguel, se viu sem saída.
Na época no movimento MST (Movimento sem teto) estava organizando uma invasão para onde até hoje é chamado Anita Garibaldi. Meu pai “comprou” uma parte de uma terra com nossa televisão na época e com o restante com dinheiro, lembro-me de não ter sido tanto, mas foi suficiente para comprar uma parte de terra. Meu pai passava noites lá, teve que construir um barraquinho para poder dormir por lá, se não ele poderia perder o espaço dele. Era muito pequena na época, não entendi muito, mas pelo jeito que meu pai conversava com minha mãe, eu achava que iriamos morar “debaixo-da-ponte” acho que é uma conotação que conhecem, ou que tenho certeza já ouviram.
No dia da mudança, foi uma das mais estranhas sensações que tive, estava tudo tão escuro, o caminhão balançava muito, e pensava comigo o que é isso, onde parámos? Desci do caminhão e vi várias fogueiras e estava tão escuro, era um breu.
Bom de lá para cá as coisas melhoram muito, cresci na Comunidade Anita Garibaldi, no qual quando adolescente tinha tanta vergonha de falar de onde morava, de nunca poder ter tênis branco pois ficaria marrom de barro, ou mochila de rodinhas por falta de asfalto. Morava no final da antiga Rua nove, hoje Rua Olga Benário. Primordialmente em janeiro nos dias de chuva, via meu pai orando para os ventos não levarem nosso telhado, não tiramos baldes suficiente para todas as goteiras que rodea nosso teto. Esses momentos me marcaram de uma certa forma. Mesmo que sem luxo, meus pais nunca deixaram faltar comida em casa, não era fartura, mas era suficiente, via minha mãe sair de madrugada de casa para trabalhar como diarista juntamente com meu pai.
Criada nesse contexto, uma mulher, adolescente, negra, vê poucas alternativas, parece que não há outra saída a não ser o mundo do crime, drogas ou o destino de muitas das minhas, ficar grávida na adolescência. Desviar do que o sistema prega é MUITO difícil, pois não temos uma boa educação nas escolas, não temos comida na mesa, nem mesmo dinheiro para pagar as contas ou ter uma mistura dentro do freezer ou pior nem ter freezer. Quantas vezes vi minha família passar necessidade, carregávamos água da mina pois sabíamos que o caminhão da água não ia passar na semana para entregar água. Carregar baldes de água por quilômetros, pesado de baixo de sol. Sem falar, da mordomia que era ter chuveiro, ter descarga ou até mesmo ter energia elétrica em casa.
Porque ver seus pais se matarem de trabalhar e mesmo assim no fim do mês não conseguir comprar mistura é triste! É frustrante, imagina para eles.
Um adolescente que cresce nesse contexto, não irá querer trabalhar pois via seus pais trabalharem e nem por isso tinha uma vida “boa”, então o que sobra é a obtenção de dinheiro fácil que pelo menos poderá comprar um refrigerante no fim de semana e um frango assado.
Infelizmente era o contexto no qual estava inserida e que muito de vocês estão agora. Sem ter saídas, e vendo um caminho fácil muitos entram na porta mais “larga”.
Entretanto, não entrei nessa porta. Eu mesma construí a minha porta, com o que eu tinha, não era muito, mas, era minha vontade. Não queria me ver como muitas de minha idade, queria ser diferente, queria ter algo melhor na minha vida e proporcionar algo melhor para meus pais. Queria encontrar algum meio de sair daquele constante sofrimento e escassez de nossas vidas. E foi através dos estudos que consegui atingir meus sonhos.
Mas, não foi sozinha, tive ajuda da minha família e de terceiros, assim como do Cursinho Comunitário Bonsucesso. Comecei minha jornada com 14 anos de idade, quando comecei a ir com minha irmã para o Cursinho, aos fins de semana, era difícil, primeiro porque era longe, saía do Anita Garibaldi até o Edu criança andando pois não tínhamos condições de pagar condução, era assim em dias de sol e de chuva. De manhã bem cedo, até a noite nos sábados e no período da manhã. Mas serei bem sincera, amava ir para o Cursinho, por mais que não entendi as matérias, ia para casa estudar. Lembro que queria entrar na ETEC para ter um ensino médio de melhor qualidade, fiz a prova e infelizmente não passei. Meu pai me levou para fazer a prova, em um dia de folga, detalhe ele só tinha um dia de folga, e fiquei muito triste porque gastei um dia de folga do meu pai para não passar. Dali por diante me reergui e falei para mim” isso não irá se repetir”, se for para perder um dia de trabalho ou de folga será para ter um resultado positivo.
Depois de 6 meses no Cursinho passei para o curso de aprendizagem industrial no SENAI, meu pai me levou para fazer a prova, me lembro que andamos boa parte do caminho pois era mais barato. Mas passei, fiquei tão feliz pois meu nome estava na primeira lista entre os primeiros colocados, fiquei feliz por dar esse orgulho para meu pai, pois ele não perdeu um dia de descanso por nada. Dalí por diante foi mais difícil, pois logo que entrei me vi na necessidade de encontrar um trabalho, isso com 15 anos de idade, pois não queria dar a despesa da passagem para os meus pais, e com o SENAI era possível me atrelar a uma empresa como Jovem Aprendiz, e foi isso que fiz, consegui um emprego no Tatuapé.
Minha rotina era pesada, lembro do meu pai ir comigo uma vez ao meu trabalho e me explicar o caminho, isso só foi uma vez. Daquele ponto em diante seria só eu, foi assim por um ano, acorda 04h30 para pegar a lotação da armênia ou o ônibus para São Miguel, mas lá eu sabia que iria enfrentar o Calmon Viana que naquele tempo era aqueles trens antigos, e lotadíssimo de gente. Foi abusada uma vez nesse trem, me senti horrível depois tinha ficado com tanta vergonha de contar para alguém que ficou por isso mesmo. Depois ia correndo para o curso no SENAI e do SENAI ia correndo para escola. Me recordo o quão lotado era aquela lotação, na época independente do local que ia 17h00 tudo era insuportavelmente lotado, e um trânsito, mas eu tinha que ir naquele horário se não iria chegar tarde na escola e não ia conseguir entrar. Tantas vezes implorei para entrar na escola explicando minha situação, para não perder um dia de aula, mesmo exausta eu ia sempre para aula. Saía da aula, na época estudava um pouco longe de casa, no Storópolis , no São João, então tinha que pegar um ônibus de lá para minha casa. Chegava em casa 23h30 para mais quando conseguia pegar o último ônibus.
Era super corrido minha vida, mal parava em casa, foi assim que parei o Cursinho, mas não parei de estudar. Finalizei o curso de aprendizagem industrial e passei no curso técnico, isso fazendo o vestibular como todo mundo. Fiquei 2 anos no técnico, mas com minhas boas notas fui convidada para participar do treinamento para competir para as Olimpíadas do conhecimento. Era corrido também, nessa época não trabalhava, mas tinha que chegar cedo no SENAI para treinar até o horário do almoço, e de lá ir para o curso técnico. Tinha vezes que almoçava minha marmita no ônibus, sentava-me no fundo e abria a marmita e comia com minha colega para conseguir fazer tudo a tempo. E continuava estudando no período noturno. Mas acabei não sendo classificada nas olimpíadas, mas foi um grande aprendizado na minha vida.
Bom, após esse período finalizei meu técnico com 17 anos e após isso quando completei 18 anos comecei novamente a trabalhar, trabalhei em uma companhia de Callcenter, à tarde, e tinha tempo livre no período da manhã, sem falar que também tinha me graduado na escola. Com esse tempo livre passei 6 meses estudando até fazer a prova da FATEC-SP, mas antes havia tentado o Enem havia passado na Universidade Federal de Santa Catarina para Engenharia Civil mas meus pais não tinham condições de me sustentar por lá, nem pagar a passagem para eu ir até lá, pois ela já estava ajudando minha irmã na Federal do Mato Grosso.
Então com isso prestei para FATEC-SP o vestibular, no período vespertino, passei e entrei para Hidráulica e Saneamento Ambiental, pois tinha a ver com a área que meu pai já atuava e tem um viés de engenharia. Passei 4 anos nesse curso, é uns dois cursos mais longos na FATEC. Nesse período também trabalhei por um tempo no período noturno, não foi nada fácil, saia da FATEC e ia para casa dormia um pouco e entrava no trabalho às 21h e saia às 7h do outro dia. Dormia mais um pouco e ia para faculdade às 12h. Tinha os fins de semana para me deitar nos livros e fazer milagre. Mas consegui me formar, depois entrei em outras empresas e consegui ajudar minha família também. Sempre trabalhei e estudei ao mesmo tempo.
No último ano da FATEC quando estava fazendo meu TCC, descobrimos que minha mãe estava com câncer no duodeno/pâncreas. Descobri quando estava na empresa. Não entendi até hoje minha reação, mas estava sem saber o que fazer, pesquisei muito tudo sobre isso e descobri que era um câncer muito difícil de ser curado. Mesmo assim, ela lutou, passou por uma cirurgia, mas um período depois o câncer voltou e por negligência médica por achar que era uma Hernia de disco, minha mãe teve pouco tempo de vida. Minha mãe foi diagnosticada com câncer de coluna com metástase, e em setembro de 2017 minha mãe faleceu sem eu poder falar que amava muito ela. Mas, ao menos ela viu eu apresentar minha monografia, minha amada mãezinha estava lá, comigo em um dos momentos mais estressantes da minha vida.
Em 2016 no final do ano, fiz o Enem para já alinhar minhas perspectivas no futuro, queria fazer engenharia, eliminar o máximo de matéria e me formar, quando fiz a prova sai com um gostinho de querer mais da redação, ou até mesmo de missão cumprida. Lembro que minha pontuação foi quase máxima na nota da redação do Enem ficando com quase 950, fiquei tão feliz com minha nota. Nunca pensei que seria possível, mas consegui. Com minha nota do Enem optei por entrar na UFABC pois era a única Universidade Federal com ensino noturno, portanto seria possível trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Ao finalizar a FATEC eu já entrei na UFABC, para o curso Bacharelado em Ciência e Tecnologia, com ênfase em engenharia de gestão.
Falando assim parece que foi tão rápido e fácil, mas não foi, não havia um dia que não saía de casa depois das 7 e voltasse depois das 23h em casa, não parava em casa, meus fins de semana focada nos livros, e minhas notas sempre foram boas, logicamente com umas DPs, mas sempre caindo e me reerguendo. Não obstante, além de trabalhar e estudar sempre me vinculei com o trabalho voluntário, mas um que me ajudou muito foi através da associação estudantil IAESTE/ABIPE no qual eu passei 2 anos trabalhando como voluntária.
Uma coisa que esqueci de falar, um dia eu passei em uma entrevista de uma multinacional, e infelizmente não passei para as seguintes fases pois não tinha um nível de inglês aceitável, na verdade somente o do ensino médio. Isso ainda na FATEC, fiz 2,5 de curso de inglês no qual eu mesma paguei aos fins de semana.
E quando atuei como voluntária na IAESTE exercitei muito meu inglês, pois ajudava muito estrangeiros estudantes aqui em São Paulo, ajudava no aeroporto de Guarulhos, levando ao destino, dando suporte se necessário para hospedar por alguns dias em casa, entre outras coisas. Foi muito bom, depois que minha mãe faleceu eu me submergir nos estudos e nessa associação como se fosse um refúgio para minhas dores. Eu sempre tive um sonho de sair do Brasil e morar fora por um tempo. Foi ai que comecei a pesquisar métodos para meu sonho virar realidade, encontrei a IAESTE, mas todos os meios envolvia dinheiro, com isso trabalhei de todas as formas que consegui, não somente trabalho formal, mas freelance também, não me envergonho de ter feito faxina para ganhar uma grana extra, nem por ter passeado com cachorros logo depois do trabalho antes da aula. Foi suado, mas juntei uma grana. Sem falar das coisas que vendia também, nada vem de graça!
Com o trabalho na IAESTE também juntava pontos, para usar no dia que quisesse também ir para fora, e foi através do meu esforço e dedicação ao programa que consegui ir para fora do Brasil, passei um ano e meio trabalhando na Suécia, primeiramente como estagiária e depois efetiva como engenheira de desenvolvimento de produto.
Foi uma experiência e tanto, mudei absurdamente a forma que vejo a vida, mas ainda tenho sonhos não concretizados em relação a ir para outros países, mas acredito que está perto!
Tentei ao máximo sumarizar minha história, mas ao mesmo tempo de não só mostrar as conquistas, mas os pormenores que a vida te faz passar para conseguir algo.
Você é dono de sua própria história, nunca deixe sua história nas mãos do sistema, de sua família, amigo ou de qualquer pessoa.
Tudo que colhe é basicamente o que planta, como a terceira lei de Newton prega, toda ação tem uma reação, não é diferente no âmbito de nossas vidas. Somos os autores do livro de nossa vida, e aí vai deixar essa responsabilidade nas mãos dos outros?
É difícil, sim e muito, vai pensar em desistir, vai gritar de dor, remorsos por não ter passado mais tempo com quem ama tanto, vai se lamentar, vai achar que escolheu o caminho errado, que tudo que fez não valeu a pena, que o mundo lá fora é melhor, vai chorar ao voltar para casa de cansado, vai suar de correr para pegar o ônibus, vai ter pessoas duvidando de seu potencial, vai ter que se igualar com o inigualável que é sua vida, engolir sapos, tirar notas baixas, pegar DP, cair e se levantar, perder pessoas que ama no trajeto, ser ausente, ser tido como chato, vai perder amigos, vai ser só por um tempo entre vários pormenores que não há espaço nessa folha para descrever, mas no fim…
Ah o fim se houver, você vai falar que valeu muito a pena, valeu a pena porque minha família estava lá, quando recebi o diploma, vai valer a pena porque representará milhões em empresas que pessoas de onde veio teriam baixíssimas chances de entrar, vai representar sua raça seu gênero em uma área predominantemente regida por homens brancos, vai se orgulhar por representar seu povo, sua nação em outro país e ainda mostrando o Brasil, uma outra cara do seu país.
Vai mostrar que brasileiro é criativo, esforçado e determinado. Por isso que vai valer muito a pena. Nunca pense pequeno, almeje mais, sempre mais, o impossível sempre é somente questão de opinião.
Assista ao depoimento da Andressa em nossa Aula Inaugural, em 2021
Seja o protagonista de sua história, você é mais do que pensa que é, caia, levante! Você é o único representante do seu sonho na face da terra, e lembre-se não é somente o seu sonho, mas de milhares, você será o porta-voz para milhares que assim como você irão dizer, eu consegui. Será o exemplo para quem não tem nenhum exemplo dentro de casa. Nunca se diminua, mas sempre atue como Sócrates, só sei que nada sei! Seja humilde, mas não deixem pisar em você.
Agora, entende que meritocracia não existe para nós, que meritocracia é sim algo injusto no nosso contexto, infelizmente somente nós que temos que mudar isso, que temos o poder para isso, mostrando para eles que só precisamos de uma oportunidade!
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